Alheios às suspeitas de apostas, atacante fã de Vini Jr e dono de lava jato, zagueiro-fisioterapeuta e lateral ex-gerente de açougue compõem cenário da última divisão que revelou Lelê, Chay e Edu
Por Caroline Nascimento e Raphael Zarko* — Rio de Janeiro e Xerém, RJ
Trinta anos depois de montar o Palmeiras bicampeão brasileiro, José Carlos Brunoro desce da tribuna no intervalo de partida de Bangu, no estádio de Moça Bonita. Revoltado com a arbitragem, o atual diretor de futebol do Zinza FC não se aguentou e trocou ofensas com o delegado da Ferj no empate contra o Paraty.
Era só mais uma rodada da Série C do Campeonato Carioca, a quinta divisão da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ). Série que tem dois Messis, um Drogba, Dembelé, Huck, Puyol, Kanté e Casemiro, entre outros apelidos de peso na última divisão do futebol estadual.
Quando é notícia, a competição chama atenção pelo São Cristóvão, que deu volta olímpica no estádio Ronaldo Nazário em espécie de primeiro turno. Ou pelas suspeitas de manipulação no futebol, que culminou no afastamento de três clubes nessa segunda pela Ferj. Num fio que ainda vai se desenrolar em tribunais desportivos e investigações policiais iminentes.
A fase inicial tem 121 partidas previstas – termina neste fim de semana, mas 32 ao todo não vão acontecer. Ao menos sete times foram excluídos ou não disputaram jogos agendados – não só pelas suspeitas de manipulação, mas também por não cumprirem requisitos mínimos, como a regularização de 11 atletas profissionais, por não contratar ambulância obrigatória para o jogo de futebol no estádio ou por não quitarem o borderô dos jogos, que geralmente varia de R$ 5 mil a R$ 9 mil por jogo. Sempre de prejuízo aos clubes, é claro.
Súmula de jogo cancelado na Série C. Relação de jogadores não foi entregue. Brasileirinho terminou afastado pela Ferj — Foto: Reprodução
— Para se inscrever na CBF, custa mais ou menos R$ 600 mil. Na Ferj, da primeira vez, R$ 200 mil. É muita coisa. Não sei se precisaria cobrar isso. Mas em parte eles têm razão. Se o cara vai gastar R$ 600 mil, ele não vai largar a competição — avalia Brunoro, que montou sua equipe com o apoio do presidente Renato Villarinho, que foi seu jogador de vôlei na Pirelli nos anos 1980.
José Carlos Brunoro discute com dirigente da Ferj: ele é diretor do Zinza FC — Foto: André Durão
Presidente do Zinza, Brunoro e Djalminha na rua Figueira de Melo, na partida entre São Cristóvão e Zinza FC — Foto: Raphael Zarko
A última rodada de classificação, com quatro avançando de cada fase, vai definir os últimos a avançar na competição. Apenas dois times sobem. Além do São Cristóvão, estão garantidos na fase final Itaboraí Profute, Zinza, Juventus, Uni Souza e Campos.
O ge acompanhou in loco nas últimas semanas algumas partidas da competição. Com público bem reduzido, em estádios acanhados – levantamento do site Acesso Carioca apontou 119 torcedores em média por jogo numa das rodadas de maior movimento.
Gilcimar, Messi e Dembelé na Série C do Rio: jogadores do Paraty — Foto: André Durão
A reportagem conversou com dirigentes envolvidos na competição e entrevistou sete atletas – leia mais abaixo breve depoimento de cada um. Numa competição sub-23, com exceção de cinco permitidos por equipe acima da idade – um deles é Bruno, ex-goleiro do Flamengo, que defende o Atlético Carioca -, são jovens, a maioria negros e moradores da Baixada Fluminense que conciliam a atividade com outra profissão. Mas nunca deixam de sonhar.
Bruno defende o Atlético Carioca na Série C. Desde 2019, saiu da prisão em regime semiaberto. Hoje, vive em liberdade condicional — Foto: Clever Felix/Atlético Carioca
— Se pegar os jovens que ainda podem chegar a time grande, os médios de idade, os veteranos que de repente não chegaram e ainda podem ter nova chance… Mas sempre é um sonho. Um sonho de alcançarem algum lugar — define Brunoro, hoje com 73 anos, mas plenamente dedicado ao time da marca de roupa Zinzane. Um projeto ambicioso inspirado no Red Bull Bragantino
Se não faltam problemas e está sempre no ar suspeitas de ilegalidades sobre apostas, sobra também esperança. Lelê é o caso mais recente de jogador revelado na Série C estadual que conseguiu dar salto na carreira. Mas Chay, ex-Botafogo, hoje no Ceará, e Edu, ex-Cruzeiro, são outros exemplos.
— A nossa intenção é promover também a carreira desses meninos. O Dembelé mesmo está com pré-contrato para Portugal. Tem clube de olho nele. E a coisa acontece. Aconteceu com o Lelê aqui na Série C e ele foi embora. Olha onde ele está! Existe a perspectiva de muita coisa boa com esses garotos com nomes de craques — conta Alan Ducasble, presidente do Paraty.
O regulamento da competição prevê a inscrição de até seis jogadores não profissionais (amadores), que muitas vezes recebem baixas ajudas de custo. Para jogadores sob contratos curtos – a competição termina em agosto -, a regra é ao menos um salário-mínimo (R$ 1.320,00). Mas há exceções, é claro, com jogadores recebendo acima desse “teto”. Também não é raro relatos de jogadores serem enganados e não receberem seus salários ou ajuda de custo.
O ge apresenta abaixo depoimentos de alguns desses sonhadores da bola. Parecidos e tão distantes um dos outros. Retrato de uma competição quase invisível que tenta seguir o lema “Nada nos para”, do campo do Marrentão, em Xerém, a poucos metros do centro de treinamento do Fluminense, clube que tanto revela e tanto muda a reallidade de tantos garotos com o futebol.