Com posicionamentos pouco vistos no futebol, dirigente ficou conhecido em julgamento em 2013. Hoje é um presidente com lado boleiro que afasta desafetos e dribla dívidas para gerir o clube
Por Raphael Zarko — Rio de Janeiro
Morador de Vila Isabel, um dos bairros vizinhos ao Maracanã, Mário Bittencourt ia na infância ao estádio com a mãe rubro-negra. Após derrota em clássico para o eterno rival, o pequeno tricolor tirou a camisa na saída, decepcionado com o resultado. A mãe o repreendeu na hora.
– Bota essa camisa! Aprende a perder! – disse Ada Regina.
Mário morou com a mãe na casa dos avós depois da separação dos pais, quando tinha quatro anos. Do pai, Luis Mario, ele herdou a paixão pelo Tricolor.
A bronca da mãe foi relatada ao ge numa das muitas conversas e entrevistas para este perfil do dirigente tricolor, que não quis dar entrevista. Nesta semana, ele pode entrar para a história como o primeiro presidente do Fluminense campeão da Libertadores, na final de sábado, contra o Boca Juniors.
Hoje com 45 anos, Mário passou a viver o dia a dia do Fluminense quando ainda estudava Direito. Foi por indicação de um amigo do padrasto, o jornalista falecido Roberto Porto, que ele decidiu conversar com Peter Siemsen.
Em 1998, muitos anos antes de ser presidente entre 2011 e 2016, Peter começava a ajudar a diretoria eleita na enxurrada de ações judiciais de um clube que estava em frangalhos – naquele ano, foi rebaixado à Série C. Aos 20 anos, Mário vestiu um blazer e foi ao escritório de Peter em Botafogo.
– Fui muito franco com ele. Disse que não tinha dinheiro, que não podia pagá-lo, mas ajudar do meu bolso com alimentação. Eu gostei dele: “A paixão vem em primeiro lugar. Quero muito. Estou dentro” – recorda Peter, sobre o que ouviu do advogado que ainda nem usava barba.
– Ele era muito safo para a idade. Para aquele ambiente em que vivíamos, sem grana, cheio de problemas, se adequava perfeitamente. Era muito guerreiro. Acompanhava futebol com detalhes.
Nelson Rodrigues e Pequeno Príncipe
A atividade no clube e a vida política são muito antigas na vida do advogado que ganhou as manchetes num julgamento que completará 10 anos em dezembro. Aquele que decretou o rebaixamento da Portuguesa no Brasileiro de 2013 por escalação irregular de atleta na última rodada da competição.
Na ocasião, como advogado do Fluminense – qualificado como terceiro interessado no caso, pois havia ficado entre os quatro últimos em campo –, Mário citou trecho do livro que ganhou da mãe quando era criança. Ele falava de “O Pequeno Príncipe”, do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry: “Regulamento é regulamento”, encerrou a sustentação de 12 minutos naquele dia.
No início, porém, foi até as origens e mencionou o tricolor Nelson Rodrigues: “Nada é mais difícil e cansativo do que defender o óbvio”. Com gestos ostensivos, levantando e abaixando muitas vezes os braços, Mário virou meme, ganhou admiradores tricolores e haters das arquibancadas à internet.
O peladeiro
Eleito em 2019 para a presidência do Fluminense em substituição ao encurtado mandato de Pedro Abad, Mário hoje é absoluto nas Laranjeiras. Chegou ao poder numa aliança com Celso Barros, ex-todo-poderoso da Unimed, patrocinadora que montou os times dos títulos da Copa do Brasil, de dois Brasileiros e do vice da Libertadores de 2008.
Com Celso ao lado, Mário venceu com 2.225 votos contra 1.032 da chapa de Ricardo Tenório. Curiosamente, hoje ele é desafeto do aliado da eleição e colocou Tenório na vice-presidência de Projetos Especiais, em maio deste ano.
– O Mário virou um rei. Ele é conhecido como pavão, imperador, reizinho – atacou Celso Barros, em 2021, depois de rachar com Mário.
Ao ge, Celso preferiu não falar muito sobre o atual presidente. “Já estou de saco cheio disso, não vou ficar falando de Mário”, disse à reportagem, afirmando que no momento só importa torcer para o Fluminense.
A ruptura entre os dois se tornou irreversível na crise do Brasileiro de 2019. Com Fernando Diniz, o Tricolor afundou na zona do rebaixamento no fim do primeiro turno. Celso, que seria o comandante do futebol, sentia-se esvaziado. O presidente segurava Diniz. Quando finalmente cedeu, foi se solidarizar com o treinador pessoalmente. Um gesto que Celso nunca engoliu.
Agora aliado do presidente, Ricardo Tenório foi um dos dirigentes que não atenderam à reportagem do ge.
A relação próxima com jogadores é parte do lado boleiro de Mário. Peter lembra que o jovem advogado jogava pelada e tinha vida social ao lado de muitos ex-atletas e sempre conviveu e conservou esses contatos. O escritório particular do atual presidente – que durante muitos anos prestou serviços ao Fluminense e hoje atende a Chapecoense, Grêmio, Santos, Nova Iguaçu, Volta Redonda e Resende – é de origem cível, trabalhista e desportiva.
“Seu comprometimento com o Fluminense sempre foi marcante”, comenta Pedro Trengrouse, contemporâneo na advocacia e com longa estrada no futebol. Ex-presidenciável no Tricolor, Trengrouse hoje é um dos assessores mais próximos do presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues.
– Perdi meu pai na pandemia. O Mário fez questão de homenageá-lo. Organizou uma missa no clube. É a lembrança mais marcante que tenho com ele – conta Trengrouse.
Para Trengrouse, Mario tem a chance de entrar no rol dos maiores presidentes da história do Fluminense. Considera que, com o orçamento atual, “ele (Mario) faz milagres”.
Um dos momentos mais importantes da chegada do Fluminense à final da Libertadores de 2023 se deu na virada do ano. Mário pediu reunião com o empresário Carlos Leite, que representa o volante André, um dos destaques da equipe.
– Ele me procurou e disse que o Fluminense não tinha interesse de vender o André este ano. Conversei com o jogador, expliquei a ele, que comprou a ideia. Acordamos que ele só iria ser negociado de janeiro de 2024 para frente – contou Carlos Leite.
Mário negociou então a valorização e a renovação do contrato de André. Neste ano, o Liverpool acenou com proposta na casa dos 30 milhões de euros. Mas não houve avanços.
– Houve várias propostas realmente, todas que chegaram a mim eu encaminhei ao Mário, mas ciente de que não haveria negociação. A não ser que o Fluminense mudasse de ideia. Ele não tinha porque sentar comigo, não é obrigado a vender ninguém. Mas ele teve essa preocupação. Não tem essa arrogância e prepotência que alguns têm de falar: “Procura meu diretor” – disse o empresário.
Devo, não nego
Desafetos e elogios à parte, Mário é figura querida por muitos funcionários do Fluminense. Mesmo com alguns atrasos salariais e dívidas em parte da administração – o que inclui fornecedores no centro de treinamento e no Maracanã, alguns desde março sem receber por operações de jogos -, faz da presença constante no dia a dia entre o CT e as Laranjeiras ferramenta de persuasão.
É prática de Mário Bittencourt pegar o próprio celular e mostrar a agentes e até jogadores o aplicativo que mostra as finanças do clube. Em alguns casos, justifica atrasos nas remunerações e escolhe pagar aqueles que recebem valores menores: “Eu posso chegar até aqui”, “esse mês só consigo te pagar 30%, mas você vai receber aos poucos”, são argumentos usados para convencê-los.
Num meio tão conservador e cristão quanto o futebol, Mário tem outra particularidade. É ateu e tem posicionamento político e social mais à esquerda, combinação raríssima no futebol.
Costuma dizer que acredita no que se faz nesse plano da vida. Mas deixou tudo de lado e foi visto cantando o tradicional “a benção João de Deus, nosso povo te abraça” nos minutos finais do dramático jogo contra o Argentinos Juniors, nas oitavas de final. O Tricolor precisava de um golzinho salvador, que veio depois dos 40 minutos do segundo tempo.
– Ele é ateu, mas Deus ajudou ele para c%$#&* na Libertadores – diz outro agente político afastado do clube que não quis se identificar e referia-se aos gols perdidos pelo equatoriano Valencia.
Mário foi criticado por algumas negociações, como a de Evanílson ao Porto e a de Luiz Henrique ao Betis. O empresário de Evanílson é Eduardo Uram, cuja relação com a diretoria tricolor vira e mexe é alvo de protestos de torcedores. Nas ocasiões, o dirigente justificou as vendas pela necessidade de cumprir orçamento e pagar dívidas a curto prazo. Em 2023, recusou propostas pelo sonho do Fluminense na Libertadores.
Num passado recente, reagiu fortemente em reunião em que ouviu apelo e choro de Pedro para se transferir ao Flamengo. “Mário ficou vermelho, parecia que ia infartar”, contou Celso Barros no podcast “Charla”.
As apostas nas pratas da casa são alvo de polêmica no Fluminense. O presidente, ele mesmo cria da casa, defendia outra política há pouco tempo. É o que diz outro desafeto de Mário.
– Mário está fazendo o trabalho dele. É momento excelente para todos nós, tricolores. Ponto final, a menos que queiram transformá-lo num Deus ou coisa parecida – disse Pedro Antonio, ex-vice-presidente de Projetos Especiais do Fluminense.
O empresário hoje mora em Portugal e viajará ao Rio de Janeiro para a final da Libertadores. Aliás, já faz planos de ir também à disputa do Mundial de Clubes.
– Fico satisfeito que hoje o Fluminense usa a base e que o Mário hoje reconhece a importância da base. Tive só uma divergência séria com ele. Peter era presidente, e ele, vice de futebol. Tivemos uma grande discussão. Ele era a favor de “acabar” com Xerém. Disse, na época, que com R$ 1 milhão por mês ele faria um tremendo time. Nada como o tempo – comentou.
O CT do clube chegou a levar o nome de Pedro Antonio, principal financiador da obra. Mas a homenagem foi retirada em 2019 por Mário. Atualmente, o centro de treinamento se chama Carlos Castilho, um dos maiores ídolos tricolores.
Peter foi questionado pela reportagem sobre a reunião citada por Pedro Antonio, mas não confirmou nem negou o caso. Mário não quis falar com o ge, mas foi informado por alguns entrevistados sobre esta reportagem. Ele nega veementemente o que contou Pedro Antonio.
Ex-dirigente do Benfica, do Shakthar e do Paok, José Boto teve duas reuniões com o presidente do Fluminense na tentativa de contratar Kayky, em 2021. Cobiçado pelo grupo City, o jovem jogador era destaque das divisões de base do Tricolor. Com a política do Shakthar de pagar barato pelas promessas brasileiras, o dirigente português saiu de mãos vazias do encontro.
– Pelo que conheci do presidente Mário, ele sabe o que quer. Não parece aquele tipo que muda de ideia por um ou dois resultados. Fiz a primeira oferta, depois melhorei, mas ele não cedeu. Ele tem noção boa dos valores que tem na base, o que muitas vezes não acontece com outros presidentes – comentou.
Contato próximo com jornalistas
Braço direito de Mário no Fluminense, o diretor de futebol Paulo Angioni disse, recentemente, que enxergava no presidente “a maior liderança do futebol brasileiro”. Quem convive identifica nele um típico cartola dos anos 1990, mas, evidentemente, atualizado.
Adora colocar frases de efeito, provocar a atenção da imprensa e controlar as narrativas – mantém contatos por mensagens com jornalistas que acompanham o Fluminense . Aliás, Mário é filho de uma diagramadora de redação de jornal, enteado de um jornalista e irmão de criação do narrador Roby Porto.
Conhece a cabeça de jornalistas, sabe que informações exclusivas – mesmo que não sejam tão exclusivas assim – são mais valorizadas. Gosta de liderar blocos de discussão. É o que faz na Liga Forte Futebol num grupo que tem, por exemplo, o presidente do Athletico-PR, Mario Celso Petraglia, que tem 79 anos – 35 a mais que Mário. Quando jovem advogado, muitos diziam que admirava Eurico Miranda, cartola histórico do Vasco, morto em 2019 – com quem chegou a trocar farpas públicas no último mandato do vascaíno.
— Mário é, digamos, mais suave do que o Eurico nas tratativas, ou muito mais suave – dizia Angioni no Abre Aspas do ge.
Em segundo mandato na presidência do Fortaleza, Marcelo Paz tem em Mário um amigo no futebol. Eles são dois dos principais nomes do Forte Futebol, um dos grupos formados para tentar a criação de uma liga no Brasil. Quando o Fluminense atuou recentemente em Fortaleza, o carioca levou a esposa e as duas filhas para aproveitar a capital cearense. Há dois anos, os dois dirigentes disputaram a contratação de Germán Cano e trataram do assunto de maneira natural.
– A gente conversou que aquilo não poderia virar um leilão e não virou. Cano queria ficar no Rio, fez uma boa escolha e está feliz – contou Marcelo Paz.
Em discussões entre clubes, Paz viu Mário ter posicionamento mais enérgico, “mas sempre com argumentos, com oratória de bom advogado que é”.
– Ele é muito inteligente. Tem a formação jurídica, mas conhece de futebol. Tem trajetória dentro do clube, ocupou diversas funções, inclusive como diretor e vice de futebol, como diretor jurídico para chegar onde chegou. É uma figura importante no futebol brasileiro. Apesar de muito tempo no Fluminense, é um dirigente da nova geração. Tem muito tempo para contribuir.
Mário Bittencourt tem mandato na presidência do Fluminense até o fim de 2025. Ele promove estudos sobre a possibilidade de o Tricolor virar SAF, em conversas com o banco BTG Pactual do também tricolor André Esteves. O presidente tricolor já deixou claro que não vê possível SAF do Fluminense sem que o clube tenha o controle do futebol.
Alguns apostam no futuro do dirigente em outro caminho, até mesmo na CBF. Outros veem continuidade do advogado no caminho de gestor da futura SAF tricolor. Depois de estagiário de advocacia, advogado, diretor jurídico, prestador de serviço, diretor de futebol, vice de futebol, o próximo passo é ainda incógnita no jovem cartola do futebol brasileiro.