Time de Tite deu à torcida a já conhecida consistência defensiva, mas foi capaz de anular o rival na etapa final com toques de efeito e gols típicos de um grupo que sabe gosta da bola
Por Fred Gomes — Rio de Janeiro
O primeiro teste de fogo do Flamengo em 2024 teve cara de prova com consulta: fácil e sem sustos. Os jogadores rubro-negros pareciam ter um manual à disposição. O primeiro gol foi obra de quem está muito atento às orientações do professor. O segundo contou com a genialidade de alunos que têm o dom para tirar 10. Construído com segurança, eficiência e uma importante pitada de arte, o placar de 2 a 0 ficou barato para o Fluminense.
O Rubro-Negro mais pessimista vai dizer: “ah, mas o Fluminense jogou com os reservas”. Não é bem assim. Poupou alguns de seus titulares, como Marcelo, Felipe Melo, Ganso e Keno. Por outro lado, teve a dupla Cano e Arias, além dos titularíssimos André, Martinelli e Fábio. Mesmo com esses figurões, o Flu não deu qualquer susto durante 90 minutos.
Outro que ainda torce o nariz para Tite provocará: “E o gol anulado em que a defesa parou?”. A resposta é: a linha defensiva funcionou tão bem que Thiago Santos, quem cabeceia a bola, e Martinelli, que atrapalha Varela, estavam muito impedidos.
Gosto pela bola no primeiro gol
Em vez de analisarmos o jogo cronologicamente, vamos primeiro aos gols. O Flamengo abre o placar numa jogada de um time que já está muito linkado ao que quer seu treinador. É combinação coletiva de muito treino e coordenação.
Fabrício Bruno observa uma ligação direta de Antônio Carlos feita erradamente, vira o corpo e inicia uma cansativa troca de passes que atrai o adversário para o lado direito da defesa do Flamengo. Em 25 segundos, ele, Varela, Pulgar e Luiz Araújo giram a bola com 16 toques e fazem a marcação ofensiva do Fluminense balançar de um lado para o outro.
Quando Fabrício muda a direção e inverte para Ayrton Lucas, momento em que seis tricolores estavam concentrados no lado direito da defesa rubro-negra, inicia-se uma série de decisões acertadas. Ayrton observa buraco no meio e lança em Arrascaeta, que atrai a aproximação de Martinelli, Thiago Santos e Lima – os dois últimos tentam a falta sem sucesso. O uruguaio, já caído, entrega para Luiz Araújo passar o pé sobre a bola e entregá-la a Varela no timing certo.
O lateral-direito cruza, Alexsander faz corte parcial, e Ayrton Lucas, bem posicionado, intercepta, dá um “drible da vaca sem querer” no rival e encontra o espaço e o tempo necessários para chutar cruzado. Pedro, no lugar e na hora certa, ajeita o corpo para trás e empurra na rede. É o primeiro gol dele após saber que será pai de gêmeos, o nono na temporada em nove jogos.
– Flamengo e Fluminense têm duas ideias muito parecidas. As duas equipes gostam da bola, gostam do jogo. Por vezes uma alterna para ser vertical, daqui a pouco a outra atrai para o lado para procurar o gol pelo outro. Mas são duas equipes que gostam de jogar futebol. Esse lance segue o princípio do basquete: muitas vezes você roda a bola de um lado, do outro. Nisso, você mexe a marcação do adversário e as coberturas.
– É o primeiro movimento, segundo movimento, terceiro… Essa coordenação de sequência de movimentos é muito difícil de fazer. Esse bascular de um lado para o outro. Daqui a pouco você encontra espaço de infiltração. Você não faz isso a esmo, faz com objetivo para infiltrar para o lado e para encontrar verticalidade. Nossa equipe é aguda, tem velocistas, tem Arrasca, De La Cruz, jogadores assistentes, Erick, Igor… Ela roda para um lado para depois ser vertical – explicou Tite.
A descrição de Tite é perfeita para o lance. O “bascular” dito pelo gaúcho fez o Fluminense oferecer espaços no meio, e o Flamengo saiu do lado direita para explorar verticalidade por dentro com Arrascaeta e Luiz Araújo.
Arte no segundo e em tentativa de Arrasca
O golaço de Everton Cebolinha desmente frontalmente a tese que alguns sustentam de que o Flamengo de Tite é incapaz de dar show.
Num lance que parecia uma saída de bola normal, De la Cruz, o motor desse time, venceu a marcação de Alexsander com extrema facilidade ao dar dois toques na bola. Encarou a perseguição de Terans, manteve-se de pé e entregou para craques transformarem uma jogada comum em um dos lances mais bonitos do Carioca. Letra de Arrascaeta, letra de Pedro e bomba de Everton Cebolinha. Golaço!
A movimentação de De la Cruz desmontou o sistema defensivo tricolor. A progressão em direção ao gol e o passe vertical em Arrascaeta fizeram Antônio Carlos largar Pedro, que teve espaço para servir Cebolinha.
“Ah, mas o Fábio falhou”, voltará aquele rubro-negro que não se permite sorrir e que nunca tira a pulga de trás da orelha. Caro pessimista, a ajuda do goleiro adversário não diminui em nada a linda combinação.
Já que o assunto envolve Fábio e craques, o goleiro tricolor ainda tentou dar mais uma ajuda a Arrascaeta, e o uruguaio por pouco não brindou a grande maioria dos 55.401 presentes com um golaço do meio-campo. O chute próximo ao círculo central não terminou na rede do Flu por detalhe.
Os tempos e outros protagonistas
O primeiro tempo, sob calor escaldante, foi chatinho. A melhor chance foi do Flamengo, em mais uma prova de que a bola aérea está muito bem treinada. Léo Pereira, sozinho, não aproveitou cruzamento de Ayrton Lucas.
O Flamengo começou exercendo pressão alta lá na última linha de defesa do Fluminense. Em certo momento, precisou frear o ímpeto de marcação para não se cansar muito. Mesmo quando o rival conseguiu sair desse cerco, a sequência das jogadas nunca terminou em perigo.
É bom pontuar, porém, que o Flamengo teve muita dificuldade na saída de bola nesses 45 minutos iniciais, com Rossi esticando inúmeras bolas sem sucesso – dos 29 passes tentados, errou mais do que acertou: 15 a 14.
Se o Flamengo não foi incisivo na etapa, em contrapartida nem sofreu. Foram nove finalizações, apenas uma do Fluminense, em falta cobrada por Arias que terminou em ótima de Rossi.
No segundo tempo, o Flamengo botou a bola no chão e viu não apenas os homens de frente se destacarem. Os zagueiros foram perfeitos, e Fabrício Bruno ainda fez inversão importante no gol de Pedro. Os laterais Varela e Ayrton Lucas defenderam muito bem, mas foram fundamentais nos lances que definiram o clássico.
A tal eficiência usada no título da análise é expressa pelo aproveitamento no segundo tempo. O Flamengo finalizou cinco vezes, marcou dois e por muito pouco não fez três – a bola de Arrasca, perdoem a redundância, não entrou por capricho.
Taça para tirar a inhaca do ano passado
A vitória por 2 a 0 com autoridade não foi só a prova de que o Flamengo está no caminho certo, mas também praticamente garantiu a 24ª Taça Guanabara ao clube, maior vencedor do troféu.
O torcedor carioca e a imprensa costumam tratar a simpática Taça GB como “título que não vale nada”. De fato ela perdeu ainda mais sua relevância a partir do momento em que o Flamengo voltou a disputar anualmente os principais títulos na condição de favorito, seja em âmbito nacional ou continental. Além disso, o regulamento da competição joga contra uma conquista que antigamente garantia vaga direta na final.
Mas a conquista, mesmo que simbólica, já contrasta com uma amarga temporada sem taças. Ela ainda não é oficialmente do Flamengo, mas será erguida pelo clube no próximo sábado, às 16h, contra o Madureira.
Isso só não acontecerá se o Fla perder para o Tricolor Suburbano e Fluminense ou Nova Iguaçu tirarem saldo de gols superior a 10 – a diferença para o Flu é de 11 e em relação à Laranja da Baixada é de 15. Alguém acredita?