Em 1986, o médico americano Robert Peter Gale foi chamado pelo líder da União Soviética, Mikhail Gorbachev , para lidar com uma catástrofe: o acidente na usina nuclear de Chernobyl e suas vítimas. Apesar de ter sido chamado de louco, foi para Kiev com a família e ficou dois anos lá. Viajou, em 1987, para outro desafio, desta vez no Brasil: a contaminação de duas centenas de pessoas que manipularam 19 gramas de césio-137 achados no lixo em Goiânia. O material era de uma máquina de radioterapia de uma clínica abandonada.
Gale é um dos precursores da imunoterapia , o tratamento que usa células e anticorpos para atacar o câncer . Ele viajará ao Brasil para participar, no dia 23, do VII Congresso Internacional Oncologia D’Or e afirma que a imunoterapia não pode ser considerada a panaceia no tratamento de tumores.
— Acho importante as pessoas entenderem que a expectativa para a imunoterapia não é realista. Quando usamos em tipos de linfoma ou leucemia, sejam células ou anticorpos, nosso alvo não é o câncer especificamente. O tratamento também pode matar as células relacionadas: as normais e as do câncer. Nesses casos, precisamos proteger as células normais. Após destruir o câncer , temos de resgatar a pessoa. Quando falamos de cânceres sólidos.
Com os avanços da imunoterapia, os tratamentos convencionais contra o câncer, como a quimioterapia, podem ser descartados num futuro próximo?
O ponto principal é: temos progresso, é a boa notícia. Isso ocorre em tumores selecionados, que são os mais fáceis para tratar, mas haverá um longo tempo e muita inovação nos tratamentos para vermos se a imunoterapia realmente terá impacto em tumores comuns. Hoje conseguimos imaginar como poderia ser feito, temos resultados e muita tecnologia. Sabemos quais experiências têm de ser feitas nos próximos cinco ou dez anos. Acho bom ser otimista, mas o tiro vai sair pela culatra se você exagerar na ideia do que a imunoterapia pode atingir. Se vai substituir os tratamentos convencionais (quimioterapia e radioterapia)? A resposta é claramente não. Isso não vai acontecer nos próximos dez anos, talvez nunca. O foco ainda deve ser na prevenção, sempre melhor do que tratar o câncer. Isto é, modificar o estilo de vida: não fumar, praticar atividades físicas, combater a obesidade. A detecção precoce, com a mamografia e o exame da próstata, também pode ajudar.
No Brasil e no mundo existe a esperança de que a cura pode ser possível quando células do próprio corpo entram em ação contra o câncer. Quais são os melhores resultados disponíveis?
Acho importante as pessoas entenderem que a expectativa para a imunoterapia não é realista. Quando usamos em tipos de linfoma ou leucemia, sejam células ou anticorpos, nosso alvo não é o câncer especificamente. O tratamento também pode matar as células relacionadas: as normais e as do câncer. Nesses casos, precisamos proteger as células normais. Após destruir o câncer, temos de resgatar a pessoa. Quando falamos de cânceres sólidos, como pulmão, mama, cólon, pâncreas, o impacto da imunoterapia é muito modesto. Por exemplo, em câncer de pulmão: algumas pessoas que tinham uma expectativa mediana de vida de seis meses, com a imunoterapia agora podem viver nove. Você pode dizer que é um aumento de 50%, mas se olhar realisticamente, essa sobrevivência extra não é terrivelmente significativa. É só o primeiro caminho.
Sobre os tipos de câncer tratáveis com imunoterapia, quais são as boas notícias?
No linfoma de Hodgkin, um dos tipos mais comuns, o tratamento convencional já cura cerca de 80% dos casos. Para o grupo de 20% de pacientes que falharam nas tentativas disponíveis, podemos resgatá-los com anticorpos e células. Chegamos a 80% de cura. Mas é preciso lembrar: as pessoas que tratamos são muito selecionadas, têm cerca de 40 anos.
A leucemia também está nesse grupo?
O caso mais grave, a leucemia mieloide aguda, em casos com pessoas com menos de 60 anos, já curamos 30% a 40% com tratamento convencional. É importante lembrar que o transplante de medula óssea já é um tipo de imunoterapia. Hoje, temos drogas específicas para os tipos de mutação que não estavam disponíveis dez anos atrás, quando todos faziam o mesmo tratamento. Essas novas drogas já vão aumentar esse número para 50% de cura nos próximos anos. Para pessoas acima de 60 anos, o percentual de cura é menor, menos de 20%. Nos 50% que falharam, com idade menor que 60 anos, e nos 80% dos idosos que não respondem ao tratamento, podemos usar células e anticorpos para recuperar algo como 70%, 80% das pessoas. Mas o problema da leucemia é que pode voltar. Nesses casos, a imunoterapia normalmente é usada como um caminho para levar a um transplante de medula óssea. Não é cura, e sim caminho para o transplante. No linfoma, quando há resposta, pode durar muito. Com leucemia, o resultado frequentemente é transitório.
O tratamento convencional, apesar dos efeitos colaterais, ainda é a melhor opção?
As modalidades disponíveis são cirurgia, radiação e drogas convencionais. Se pudermos remover um câncer, esta é a melhor possibilidade de cura. Terapia por radiação e drogas são úteis e salvam muitas vidas. Usamos drogas para curar 90% das crianças com leucemia. Não vamos jogar isso fora.
O senhor trabalhou com vítimas do desastre de Chernobyl. Qual foi seu maior aprendizado?
Há duas formas de se olhar para Chernobyl. Uma é, embora seja o maior e mais sério acidente nuclear nas piores circunstâncias, o número real de vítimas fatais é relativamente pequeno. Foram 31 mortos em um grupo de 200 bombeiros e técnicos. A outra forma é: não são só efeitos médicos, mas as pessoas que modificaram suas vidas. Os liquidadores (cidadãos convocados pelo regime soviético para lidar diretamente com o acidente) tinham a impressão errada de que “ok, fui exposto à radiação e vou morrer, então não faz diferença se beber álcool ou fumar excessivamente”. Isso deu às pessoas uma desculpa. O resultado foi muito alcoolismo e câncer de pulmão. Não são consequências diretas de Chernobyl, mas indiretas.
E as pessoas que viviam nas imediações contaminadas?
É quase impossível saber se foram afetadas por radiação. Cada um de nós, qualquer um, tem em torno de 40% de chances de ter um câncer durante a vida. Homens, um pouco mais, 42%. Se você foi exposto à radiação de Chernobyl como cidadão comum, eu diria que seu risco aumentou para 42,5%. Nunca saberemos de verdade se Chernobyl aumentou o câncer na população em geral.
O senhor foi chamado por Mikhail Gorbachev para lidar com Chernobyl. Como foi trabalhar com ele no Kremlin?
Ele era um cara durão, mas decente. Ele perguntava para mim por que os jornais americanos publicavam que haviam sido milhares de mortes em Chernobyl, quando sabíamos que não era aquilo. Ele dizia: “Como seu governo deixa os jornais publicarem coisas que eram totalmente erradas?”. Eu tinha de explicar que o governo americano não controlava os jornais. Mantemos contato até hoje, tratei da mulher dele, que não resistiu a uma leucemia. Todos os anos fazemos um simpósio em homenagem a ela e o vejo constantemente. Ele era muito ligado à sua mulher e nunca mais foi o mesmo desde que ela morreu.
No ano seguinte a Chernobyl, em 1987, o senhor esteve no Brasil para trabalhar no acidente com o césio-137 em Goiânia. Quais foram as diferenças?
Você pode receber radiação de diferentes formas. Em Chernobyl, foi radiação externa. Como passar diante de uma televisão ou fazer radiografia. A radiação vai através de você, mas não te torna radioativo. Quando está dentro de você, os desafios são diferentes. E isso aconteceu em Goiânia, onde precisamos usar drogas para expulsar esses materiais do corpo das pessoas que ingeriram o césio. Mas notei outra questão importante. Cidadãos comuns dirigiam de Goiânia para o Rio e, quando as placas dos carros eram notadas, as pessoas vandalizavam, escreviam “volte pra casa”. Houve discriminação social. O que também ocorreu no Japão depois das bombas atômicas. Se você foi sobrevivente dos ataques e teve uma filha, não contaria a ninguém que foi exposto porque um homem relutaria em se casar com uma mulher filha de sobrevivente da bomba, mesmo que não existam evidências de que isso signifique algo.
Há dados enganosos, como na cena de um bombeiro que estaria radioativo e a mulher, que cuidava dele, teve um filho defeituoso. Isso é completamente sem sentido. Cientificamente e medicamente impossível. Dá às pessoas o medo de algo assim possa acontecer, o que é ridículo.