WASHINGTON — Uma série de documentos confidenciais obtidos pelo jornal Washington Post mostram que o governo americano ocultou, por 18 anos, informações sobre a Guerra do Afeganistão . Segundo o jornal americano, funcionários da alta cúpula do governo americano não só fizeram afirmações que sabiam ser falsas, mas também esconderam provas de que o conflito é uma guerra que não pode ser vencida .
Obtidos pelo jornal após uma batalha legal de três anos, as transcrições, anotações e áudios, que juntos somam mais de 2 mil páginas, correspondem a entrevistas com cerca de 400 pessoas que tiveram papéis importantes na guerra. Seus comentários mostram, com franqueza de quem estava falando confidencialmente, como as decisões de três presidentes — George W. Bush (2001-2009), Barack Obama(2009-2017) e Donald Trump (2016-) — estão no centro do fracasso americano em Cabul.
“Nós não tínhamos uma boa compreensão do Afeganistão. Não sabíamos o que estávamos fazendo”, disse em 2015 o general Douglas Lute , que atuou como vice-conselheiro de Segurança Nacional durante os governos de Bush e Obama. Seu cargo, na prática, o fazia um dos responsáveis por supervisionar os conflitos em Bagdá e Cabul — responsabilidade que lhe rendeu a alcunha de “ czar da guerra ”.
As entrevistas foram realizadas pelo Escritório do Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão ( Sigar ), agência federal criada em 2008 com a tarefa principal de eliminar a corrupção e a ineficiência no conflito. O objetivo do projeto de US$ 11 milhões, intitulado “ Lições Aprendidas ”, era identificar lições por trás dos fracassos sucessivos na ofensiva militar contra o grupo fundamentalista Talibã, derrubado do poder pela invasão dos Estados Unidos e seus aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em 2001.
O objetivo de divulgar as transcrições agora, enquanto o jornal ainda recorre à Justiça para que os nomes de todos os entrevistados sejam divulgados, são as negociações do governo de Trump com o Talibã , cujaretomada foi anunciada no sábado , após três meses de interrupção . Chamados de “ Papéis do Afeganistão ”, os documentos remetem aos “ Papéis do Pentágono ”, vazados em 1971 para a imprensa por um funcionário do Pentágono, cujas 14 mil páginas contavam uma história similar de não admissão pública do fracasso da Guerra do Vietnã.
Esforço trilionário
A Guerra do Afeganistão começou em outubro de 2001, após os ataques do 11 de Setembro, nos Estados Unidos. Na época, o Talibã governava o Afeganistão e abrigava Osama bin Laden , líder da al-Qaeda e responsável pelos atentados. Na invasão, o Talibã foi derrubado do poder e substituído por um governo pró-Ocidente. Desde então, mais de 775 mil soldados americanos foram enviados para o país, muitos deles repetidamente. Segundo o Departamento de Estado, 2.300 militares morreram e outros 20.589 ficaram feridos. Hoje, cerca de 13 mil soldados americanos continuam no país.
Nos documentos, funcionários do governo americano reconhecem que suas estratégias de guerra tinham falhas fundamentais. Eles também destacam tentativas mal-sucedidas de acabar com a corrupção, construir um Exército afegão competente e pôr um fim ao tráfico de ópio. Questionamentos sobre os custos exorbitantes do conflito também vieram à tona.
“O que nós conseguimos com esse esforço de um trilhão de dólares? [A guerra] valeu um trilhão de dólares?”, questionou Jeffrey Eggers, integrante aposentado das forças especiais da Marinha e ex-funcionário da Casa Branca durante os governo de Bush e Obama. “Depois do assassinato de Osama bin Laden, eu disse que o Osama provavelmente estava rindo em sua sepultura aquática pensando no quanto gastamos no Afeganistão.”
O governo americano nunca realizou uma auditoria de quanto foi gasto no conflito, mas a Universidade Brown estima que os departamentos de Defesa e de Estado e a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional tenham gasto algo entre US$ 934 e 978 bilhões.
Distorção de estatísticas
Alguns dos entrevistados sugeriram ainda que havia um esforço deliberado para distorcer estatísticas, até mesmo aquelas sobre vítimas: o objetivo era mostrar para o povo americano que a guerra estava sendo ganha. John Sopko, chefe do Sigar, reconheceu ao Washington Post que “o povo americano foi constantemente alvo de mentiras”.
“Toda estatística foi alterada para apresentar o melhor cenário possível”, disse Bob Crowley, coronel do Exército que atuou como conselheiro de contrainsurgência para comandantes dos EUA em 2013 e 2014. “Pesquisas, por exemplo, eram totalmente incertas, mas reforçavam que tudo o que estávamos fazendo era certo.”
O Washington Post só teve acesso às transcrições das entrevistas após solicitá-las duas vezes à Justiça federal, processo que teve início em 2016. O Sigar, por sua vez, defendia que os documentos eram confidenciais. Forçada pela Justiça, o escritório divulgou as mais de 2 mil páginas de anotações e transcrições das 428 entrevistas, além de várias gravações.
Os documentos identificam 62 pessoas entrevistadas — 366 outros nomes, no entanto, foram ocultados sob alegação de que poderiam ser alvo de humilhação, assédio ou violência. O jornal americano pediu à Justiça que o nome de todos os entrevistados seja tornado público, mas a decisão está pendente desde setembro.