Criado na base do Liverpool, baixinho de 1,67m ganhou apelido porque o pai era conhecido como Bola; primeiro treinador do meia diz que ele gosta de jogos difíceis e decisivos
Por Fred Gomes, Richard Souza e Rodrigo Cerqueira — Montevidéu, Uruguai
O baixinho De la Cruz transparece ser um jogador tímido desde a chegada ao Flamengo, em janeiro. De poucas entrevistas e palavras, o uruguaio de 27 anos dá impressão de ser “na dele”, caladão. Mas, de acordo com dois dos treinadores que o ajudaram a se profissionalizar no Liverpool de Montevidéu, isso não passa de uma fase.
Gabriel Oroza, visto por De la Cruz como o treinador mais importante que teve na carreira, reúne histórias deliciosas da adolescência do camisa 18 do Flamengo. O primeiro contato que tiveram, em 2011, foi surpreendente e muito engraçado.
– Quando o conheci, o clube me passou uma lista de 30 jogadores nascidos em 1997 que estavam chegando. Quando chegou no nome dele, eu o chamei: “De la Cruz”. E ele disse: “Eu, mas não me chame de De la Cruz, me chame de Bolita”.
– Então, na primeira vez que me via como treinador, mostrou toda sua personalidade. Era Bolita porque seu pai, que era treinador no Baby Fútbol, era conhecido como Bola. O apelido dele era Bola e o do filho, Bolita. Primeiro achei engraçado, mas depois pensei: ele tem uma personalidade definida. Com 14 anos, não é normal que um garoto já demonstre esse atrevimento em seu primeiro contato com o treinador.
Daniel De la Cruz, pai de Nico, foi presidente da liga “Baby Fútbol”, que reúne equipes de jogadores com idade inferior a 14 anos. Daniel, ou Bola, também presidia o Cohami, time em que o filho jogava. O atleta do Flamengo, aliás, foi vice-presidente da equipe.
“Desfachatado (atrevido)”
Os dois treinadores ouvidos pela reportagem do ge trataram Nico como um rapaz “desfachatado” (atrevido). Ambos insistiram na expressão para defini-lo. E Gabriel contou que o atrevimento sem limites de Bolita de la Cruz surpreendeu até mesmo Óscar Tabárez, treinador que revolucionou o futebol uruguaio, onde é respeitosamente conhecido como “Maestro”.
– Quando foi convocado pelo sub-15 e foi citado por Maestro Tabárez, o próprio Maestro me contou de uma história. O Maestro tem uma figura de senhor, mais sério, mas recebe todos os jogadores. Quando ele o recebe, Nico já disse: “Olá, Maestro, que tal?” Enquanto todos chegavam com mais calma, ele já chegou todo solto – contou Gabriel, que foi técnico de Nico no sub-14, no sub-19 e também no profissional num momento em que foi treinador interino.
Aldo Correa, treinador de De la Cruz no sub-16 e hoje responsável pelo setor de captação do Liverpool-URU, faz coro às palavras de Gabriel. Ao ser questionado se o meia não era um jogador tímido, ele também não pensou duas vezes ao escolher a palavra: “desfachatado”.
– Ele é muito atrevido, creio que está passando por um processo normal. Flamengo é um gigante da América e do mundo.
O atrevimento de De la Cruz deixou Aldo e seus companheiros em maus lençóis numa partida do campeonato local. Anos depois, o profissional conta a história às gargalhadas.
– Quando jogávamos contra rivais duros, pedia para não passar o pé em cima da bola e nem fazer nada na frente da torcida adversária. Em um jogo disse: “Nico, não, por favor, está complicado o ambiente”. Ele fez o gol e teve a gentileza de apontar para o número da camisa diante da torcida adversária (risos). Não podemos deixar o estádio (risos). Era muito atrevido no seu jogo. Era um rival duríssimo, o Cerro, e tínhamos muita rivalidade com eles porque muitos jogadores saíram daqui.
Aldo e Gabriel concordam que De la Cruz não é apenas atrevido, mas um jogador muito engraçado e que está sempre liderando a brincadeira junto aos mais próximos.
– Ele está sempre rindo, ele é divino como pessoa, está sempre alegre. Deve estar tímido porque está conhecendo o entorno e um novo clube, mas aqui sempre foi desenvolto – prosseguiu Aldo.
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ge: O que encantou os dois à primeira vista diante de De la Cruz?
Aldo: – A lembrança do Nico é que quando o vi jogar com 13 anos, e ele já chamava atenção não por seu físico, mas como se desenvolvia no jogo. Estava sempre ativo na técnica. Intelectualmente entedia o jogo muito rápido. Quando o recebo no sub-16, com 15 anos, estava convencido que seria jogador de futebol pela forma que dominava a bola, como treinava e por coisas em que estava muito à frente dos seus companheiros. Existiam, sim, dúvidas sobre seu desenvolvimento físico porque não era muito alto. Aqui no Uruguai às vezes é difícil para jogadores dessa estatura.
Gabriel: – Sem conhecê-lo e sem nem sequer tê-lo visto tocar na bola, disse a um treinador que trabalhava comigo: “Esse negrinho me parece bom”. Já se dava conta. Com o passar do tempo, víamos que estava acima da média. Um jogador inteligentíssimo. Se adaptava a todos os trabalhos. Taticamente é um jogador acima da média. Sabia tudo. Se o treinador fazia uma variação tática, ele já visualiza tudo em campo.
Facilidade para se destacar em jogos difíceis
Gabriel: – Sempre aparecia nos jogos mais difíceis. Tínhamos que cutucá-lo mais nos jogos mais fáceis. Nos jogos complicados, contra Nacional-URU, Peñarol, Defensor e Danúbio, era sempre o destaque. Sempre aparecia.
Como se trata de jogo muito difícil, crê que ele pode fazer a diferença contra o Peñarol?
Gabriel: – Já demonstrou na sua carreira. No jogo passado, ele vinha de um estiramento. Tite o tirou no segundo tempo, e ele estava um pouco cansado. Agora, com uma semana de trabalho e rodagem, em seu melhor nível, ele desnivela o jogo. Ele é “desnivelante”.
Aldo: – Estando na cabeça dele, imagino que ele queira mostrar todas suas condições. Não sei em que condições físicas está. No jogo passado, a condição física não o ajudou. Obviamente ele vai querer superar essa situação, porque Flamengo quer passar.
Inteligência
Aldo: – Intelectualmente era acima da média, tecnicamente também. Muito vertical e sempre de fazer lançamentos. Quando estreou profissionalmente, tinha 18 anos. E logo foi para a seleção uruguaia sub-20 e foi campeão sul-americano. Se destacou também na Copa Libertadores (sub-20, onde o Liverpool-URU foi finalista).
Gabriel: – Inteligentíssimo. Apesar de ter um físico de menudito (pequenino), ele sempre fugiu dos golpes com sua inteligência. Se destaca por se superar fisicamente. Sempre recebeu livre, e quando recebia livre era letal.
Irreverência
Gabriel: – Outra história é que uma vez, antes de um jogo, ele procurou a imprensa e disse: “Se preparem que vocês vão me dar o prêmio de melhor do jogo”. E foi o melhor do jogo (risos). Era algo fantástico.
Emoção e orgulho
Aldo: – Quando o vi na Copa do Mundo e quando o vi estrear no River (Plate), porque foi todo um processo até ele ter chances com (Marcelo) Gallardo, nos deu muito orgulho. Ver um garoto tão pequeno chegar à seleção uruguaia e realizar o sonho nos emocionou. Tem família, tem filhos. Isso te enche o coração, infla o peito. Ele é uma vitrine para os garotos que estão aqui conosco. Quando o veem na Celeste (seleção uruguaia), dizem que querem estar lá e perguntam sobre ele.
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